Pequenos Segredos de Bruxa é uma série que irei colocar por
capítulos no blog a cada quinze dias. O primeiro capítulo ficará disponível no
próprio blog. A partir do segundo capítulo, colocarei em forma de download em
formato PDF. Confira a sinopse, encante-se com o primeiro capítulo e aguarde o
segundo para o dia 20/04.
Ana
Sinopse:
Rafa é uma garota
comum, bem comportada e preocupada em ajudar a mãe a cuidar do irmão doente,
João. Depois de gastarem suas economias no tratamento de João, Rafa vê uma
esperança de retomar sua vida quando herda uma casa. Mas sua vida acaba dando
uma reviravolta inesperada. A casa pertencia a sua tia avó, que nem mesmo
conhecia e, sem poder vendê-la, se vê obrigada a morar em uma cidade diferente,
a conhecer pessoas diferentes e a enfrentar um mistério que ronda a casa e sua
antiga moradora. Contando com a ajuda de uma nova amiga, Rafa irá descobrir que
herdou mais que uma simples casa velha.
Baixe o segundo capítulo: Pequenos Segredos de Bruxa - Capítulo 2
Capítulo
1
Ganhando
uma velha casa
Olhando para essa
casa sinto-me como se estivesse em algum cemitério abandonado. Parece um daqueles mausoléus onde
provavelmente o próprio Drácula poderia estar dormindo em seu caixão. Não é
exagero. Até um calafrio percorreu minha espinha quando o advogado de minha tia
avó me trouxe ao local. E eu nem sabia que tinha uma tia avó. Muito menos que
eu era sua herdeira.
— Essa casa me dá arrepios. Parece estar abandonada há anos.
— E está. Levamos dois anos para encontrar você. E antes
disso, bem, digamos que sua tia não se importava muito com a aparência da casa.
— Não posso reclamar. Estou ganhando uma casa. Posso vendê-la
e comprar outra para minha família. Na situação em que estamos esse foi o
presente de Natal perfeito.
— Bem, — Renato, o advogado, estava claramente desconcertado.
— um dos termos do testamento é que a casa não pode ser vendida.
Olhei pra ele sem
acreditar. Foi um balde de água fria em meus planos. Já tinha me imaginado em
uma casa pequena, mas bonitinha, com móveis novos, um jardim e principalmente
um quarto só meu.
— Vamos entrar? — Renato perguntou.
Suspirei fundo.
Era melhor do que nada. Minha mãe estava desempregada e depois que meu irmão
adoeceu, gastamos toda nossa reserva em seu tratamento. Não tínhamos mais como
pagar o aluguel e quase não tínhamos mais com o que comprar comida.
Renato abriu o
portão de ferro e passamos por um caminho aberto no meio do mato. Não era
nenhuma mansão, mas comparada ao minúsculo apartamento de um quarto em que morava,
para mim, era uma mansão. A casa era
cinza por fora e coberta de lodo como se nunca tivesse sido pintada. As janelas
altas de veneziana em madeira estavam tortas e havia um vitral imundo no alto,
provavelmente pertencente a um sótão. Chegando na varanda as tábuas rangeram sob
nossos pés e fiquei imaginado o que me esperava lá dentro. Renato abriu a
porta. Ao entrar me deparei com uma sala ampla e poucos móveis. Um sofá
estampado, uma estante de madeira escura com vários livros e uma tv antiga.
Havia também uma lareira com o console em madeira trabalhada. O primeiro andar
era dividido em sala de estar, uma pequena sala de jantar, cozinha e um lavabo.
No segundo andar ficava uma suíte, dois quartos e um banheiro comum. Após ser
apresentada a um segundo andar também de aparência simples e empoeirada, uma
porta estreita e muito velha me chamou a atenção no final do corredor. Renato
já estava começando a descer a escada e eu o parei ao perguntar:
— O que tem ali? Você não me mostrou.
— Não tenho a chave. Mas ali fica o sótão. Vocês terão que
chamar um chaveiro para destrancar.
— Tudo bem. — Dei de ombros. O que poderia mesmo ter em um
sótão velho e mofado?
Voltamos para o
hotel onde estavam minha mãe e meu irmão e o qual Renato teve a gentileza de
pagar. Disse que havia recebido uma boa soma para cuidar de tudo após a morte
de minha tia avó, Carmela Sales. Renato sentou-se à mesinha que havia no canto
do quarto e retirou alguns papéis de uma pasta. Um rosto sério e com poucas rugas,
cabelo grisalho e bem penteado. Retirou os óculos do bolso de seu terno azul
marinho e o colocou sobre seus olhos castanhos.
— Desculpem-me fazer isso em um domingo, mas preciso desses
papéis prontos amanhã. Assine aqui. — Ele disse apontando o papel e virando-se
para mim. — E sua mãe também precisa assinar. Você ainda tem dezessete.
Assinamos os papéis
e Renato se dirigiu à porta.
—Muito bem, espero vocês amanhã em meu escritório para
tratarmos do restante. — Apertou a mão de minha mãe. — Tenha uma boa tarde,
senhora.
— Boa tarde Dr. Renato Rossini.
— Por favor, só Renato. — Disse à minha mãe e piscou para
mim. Ele já havia me pedido para chama-lo assim.
— Então, só me chame de Laura. Por favor.
Renato sorriu, acenou
para mim e para meu irmão que estava sentado na beirada da cama e saiu.
— E então, — Perguntou minha mãe. — como é a casa?
— Se quer morar em uma tumba, é perfeita. — Eu disse
exagerando um pouco no tom de sarcasmo.
— Rafa! Você ganhou uma casa e todo aquele dinheiro. Devia
estar agradecida. — Minha mãe segurou minha mão e olhou bem dentro de meus
olhos. — Isso tudo é seu. E pode fazer o que bem entender. Não vou interferir
em sua decisão. Se quiser vender a casa e voltar para Três Marias, tudo bem.
Dei um longo suspiro.
Não poderia vender a casa e o dinheiro deixado por Carmela nem era tanto assim.
Por mais relutante que eu tivesse em mudar completamente minha vida, não tinha
alternativa.
— Eu vou ficar com a casa. Nós vamos ficar com a casa. A gente pode ir arrumando aos poucos.
Eu posso encontrar outra família que precise de babá e você pode procurar um
emprego por aqui. E vamos aproveitar as férias para ver uma escola para mim e
João.
Minha mãe sorriu e
me abraçou.
— Vai dar tudo certo. Vamos ser felizes aqui.
Não
respondi nada. Não sabia o que responder já que nem mesmo sabia como estava me
sentindo. Deixar uma vida toda para trás e recomeçar do zero era algo que eu
precisava digerir aos poucos. Tranquei-me no banheiro com a esperança de que um
banho quente me ajudaria. Apoiei as mãos na pia e olhei para o espelho. Eu
estava cansada. Minha pele estava pálida e tinha olheiras. Meu cabelo preto
brilhava em todo seu comprimento, mas pela oleosidade. Eu estava um lixo. Entrei
debaixo do chuveiro e deixei a água correr por meu corpo. Nunca pensei em como
a vida de alguém pode mudar assim. Há um ano, eu era a simples Rafaela, morando
em uma pequena cidade em Minas Gerais, estudante, babá e minha única
preocupação era se a chapinha não iria dar defeito outra vez. Então meu
irmãozinho ficou doente. Minha mãe precisou sair do emprego para cuidar dele,
correndo de um médico a outro até ser internado e diagnosticado com leucemia.
E, precisando de tratamento constante, tudo o que havíamos economizado acabou.
O fato de não termos um pai por perto para dar apoio nunca foi tão
desesperador. A habilidade de minha mãe de se relacionar com caras que não
prestavam estava além da minha compreensão. Meu pai foi embora antes que eu
completasse os três anos e João nem chegou a conhecer o seu. Mas aprendi que a
vida dá algumas guinadas e, por ironia do destino ou não sei qual outra razão, uma
tia de meu pai me colocou como única herdeira em seu testamento.
No dia seguinte
fomos ao escritório de Renato e aproveitamos para dar uma volta pela cidade. Renato
estava sendo muito atencioso conosco. Mostrou os pontos turísticos, as melhores
escolas e onde comprar móveis e roupas. Aparentemente estava um pouco
incomodado com meu gosto simples. Calça jeans básica, camiseta branca e tênis. Também
indicou uma faxineira para ajudar a limpar a casa e um jardineiro para cuidar
do quintal. Mas comecei a achar que talvez ele estivesse interferindo demais.
Eu queria ter certeza de que o dinheiro deixado por Carmela não acabaria na
primeira semana. E, principalmente, que eu teria dinheiro suficiente para o
tratamento de João. Quando voltamos para o hotel vi que minha mãe pensava da
mesma forma.
— O Renato é muito gentil, mas acredito que ele não tenha
ideia de nossa situação. — Minha mãe comentou enquanto colocava uma sacola com
lanche sobre a mesa. — Mas, o dinheiro é seu Rafa. Já disse que será da forma como
desejar.
— Mãe, eu posso estudar em escola pública. Sempre estudei.
Nunca precisamos de empregados, nem de luxo algum. Não é porque recebi uma
herança que vou mudar. — Eu olhei para João que estava entretido mudando os
canais da tv. — E não quero que falte nada para ele.
Os olhos de minha mãe ficaram marejados.
Para disfarçar notei que ela se ocupou do lanche. Nós éramos muito parecidas.
Tanto fisicamente como em personalidade. O cabelo preto e comprido, a pele
clara e os olhos castanho escuro. A diferença, além das pequenas rugas de
expressão de minha mãe, era que eu havia ultrapassado em pelo menos cinco centímetros
sua altura. Eu estava com um metro e setenta. Nossos pensamentos eram muito
parecidos e tínhamos a mesma preocupação com João. Talvez ela mais do que eu.
Era mãe. Fiquei observando João sentado na cama e rindo com o desenho que
acabara de encontrar em um dos canais. Seu cabelo começava a crescer novamente
depois de uma batalha árdua, mas vencida. Com apenas dez anos de idade já tinha
passado por tanto sofrimento que me perguntei como conseguia manter o bom
humor. Sentei-me na cama ao seu lado e esperei pelo lanche rindo com ele do Bob
Esponja.
Acordamos cedo e
fomos dar uma boa limpeza na casa. Ela precisava ficar habitável, pois não
poderíamos ficar para sempre no hotel. Minha mãe ficou maravilhada e nem um
pouco assustada com a aparência da minha pequena mansão. João passou a maior
parte do tempo brincando no quintal coberto pelo mato. Ele estava mais feliz do
que nunca e, com certeza, cheio de carrapatos. Conseguimos limpar um pouco a
poeira e colocamos o sofá e as camas na beira da rua para quem quisesse pegar e
arriscar não ser engolido quando a cama quebrasse. Compraríamos móveis novos na
manhã seguinte. A luz do dia estava indo embora e a energia ainda não havia
sido ligada, apesar de termos levado lanternas e velas precisávamos parar. Mais
uma coisa a se resolver no dia seguinte. Começamos a fechar a casa e ao sair do
quarto que escolhi para mim, parei em frente à porta do sótão. Apenas por
curiosidade girei a maçaneta. E a porta abriu.
— Que estranho. Renato disse que a porta estava trancada, mas
não está. — Eu disse dirigindo-me a minha mãe que saía de outro quarto.
— Ele pode ter se enganado. Ou talvez estivesse emperrada
antes. Essa casa é muito antiga e parece que não recebe manutenção há muito
tempo.
Dei uma
olhada para dentro. Havia uma escada muito estreita e estava completamente
escuro.
— Me empreste a lanterna, vou lá em cima ver o que tem.
— Tome cuidado. Pode ter aranhas e não sei se o teto é seguro
— Minha mãe disse enquanto me entregava a lanterna.
— Não tenho medo de aranhas. E vou tomar cuidado.
— Vou descer para fechar as janelas. Qualquer coisa grite.
Eu ri e comecei a
subir a escada iluminando o caminho. O porão parecia com o restante da casa.
Cinza. Estava coberto pela poeira, cheio de teias de aranha como minha mãe
previra e com um forte cheiro de mofo. Iluminei ao redor reconhecendo alguns
objetos. Algumas caixas empilhadas, uma mesa velha de escritório com alguns
livros irreconhecíveis pelo acúmulo de poeira e algumas velas votivas. Algo
oval e grande coberto por um lençol encardido e havia um pequeno armário em um
canto. Tentei abri-lo, mas não consegui.
— Rafa! Desça, estamos indo embora. — Minha mãe gritou ao pé
da escada.
Eu queria ficar mais tempo ali. Descobrir o
que havia em todas aquelas caixas, quais eram aqueles livros e o que havia no
armário. Minha intuição dizia que ali estava a vida de Carmela. E talvez o
motivo para ter feito de uma completa desconhecida sua única herdeira.
— Só um segundo. — Gritei de volta para minha mãe. — Já vou
descer.
Peguei uma das
caixas e tirei um pouco da poeira. Não estava muito pesada. Desci carregando a
caixa e minha curiosidade junto.
Chegando no hotel tomei um longo banho e vesti
meu pijama. O dia tinha sido cansativo e eu precisava dormir. Mas também
precisava ver o que tinha dentro daquela caixa. João e minha mãe dormiram quase
que instantaneamente depois de tomarem banho e comerem os sanduiches que
havíamos comprado para o jantar. Apaguei a luz do quarto deixando apenas a luz
do abajur sobre o criado mudo acesa. Eu coloquei a caixa no chão e abri coçando
o nariz com o restante da poeira que subiu pelo ar. Estava cheia de bugigangas.
Retirei uma foto de uma jovem em preto e branco. Talvez fosse Carmela. Segundo
Renato, ela tinha noventa e seis anos quando morreu. Peguei um jornal velho e
amarelado. A data era de 03 de setembro de 1948. Passei os olhos pelas
reportagens e nada teria me chamado a atenção se a mesma mulher da foto que eu
acabara de ver não estivesse estampada bem na primeira página. Ela estava em
frente à minha mansão e tinha a expressão de quem havia sido pega de surpresa. A
reportagem dizia que Carmela Sales e sua casa haviam sido atacadas por ovos,
tomates e que houve um princípio de incêndio provocado por habitantes do bairro
que diziam estar atacando o mal em pessoa. Não dava mais detalhes do que isso. Continuei
remexendo na caixa e retirei outra foto. Fiquei confusa ao olhar para aquela
garotinha com cerca de cinco anos de idade. Era idêntica a mim quando criança.
Retirei da caixa vários papéis velhos, uma caixinha de madeira e outras fotos.
Entre elas uma foto minha recente. Eu estava de uniforme saindo da escola. A
pessoa que tirou a foto devia estar do outro lado da rua. Comecei então a
prestar atenção às outras fotos e me deparei com uma sequência de todos os anos
de minha vida. O que seria aquilo? Porque Carmela guardava fotos minhas se nem
mesmo meu pai queria saber de mim? Olhei para dentro da caixa acreditando que
de lá pudesse sair uma resposta. Peguei uma corrente de prata com um pingente
estranho. Uma pedra polida marrom com nuances douradas envolta em um delicado
filigrana de prata dando a forma de uma gota. Suspendi a corrente e segurei o
pingente entre os dedos para observar melhor. A pedra se iluminou. Levei um
susto e depois ri de mim mesma. Com certeza a pedra havia refletido a luz que
vinha do abajur. Coloquei a pedra na palma da minha mão. A luz que emanou de
dentro fez com que pequenos raios luminosos passassem através do filigrana. Fiquei
encantada com aquilo. Era algo que nunca tinha visto. Peguei o colar e guardei
em minha mala no meio das roupas. Ainda não sabia o que fazer com ele. Peguei a
pequena caixa de madeira que eu havia retirado da caixa de papelão e abri. Era
forrada com veludo preto e encaixados em três pequenos orifícios havia três
anéis, com a mesma pedra do pingente. Peguei um deles com cuidado. Estava em
dúvida se colocava ou não em meu dedo. Hesitante, coloquei-o bem devagar. A
pedra não acendeu dessa vez. Fechei a caixa com os dois anéis restantes e
fiquei observando o que estava em meu dedo. Era lindo. Uma joia daquela devia
valer uma fortuna. Decidi que mostraria para minha mãe pela manhã e talvez
pudéssemos leva-los a um avaliador. E decidi que já era hora de dormir. No dia
seguinte perguntaria ao Renato porque Carmela tinha tantas fotos minha.
Levantei-me do chão e me dirigi para a janela para fechar melhor a cortina, mas
antes que eu chegasse lá a cortina acabou de se fechar sozinha. Quase dei um
grito. Fiquei parada, me abraçando e esperando para ver se ela mexia novamente.
Mas não se moveu mais. Completamente apavorada caminhei em direção à cama e
antes de chegar ao abajur para desliga-lo, a luz se apagou sozinha. Fiz um som
abafado de desespero, me joguei na cama e me cobri até a cabeça. Não levantei
dali até o dia ficar claro. Acordei com minha mãe falando ao telefone.
— Claro Renato. Eu agradeço sua dedicação. Daqui a uma hora
então.
Tirei o cobertor
da cabeça. Eu estava suada por ter ficado abafada dentro das cobertas.
— O que tem daqui a uma hora?
— Renato vai nos levar para comprar os móveis e precisamos ir
até a AMPLA para religarem a energia.
— Pensei que tivéssemos concordado que o Renato está sendo
intrometido. A gente pode comprar esses móveis sem ele.
— Mas com ele fica muito mais fácil. Ele conhece a cidade,
sabe onde ficam as lojas certas e assim não precisamos perder tempo rodando
para todo lado. Ah, — Ela apontou para o chão. — e pode levantar para arrumar
toda essa bagunça.
Eu tinha me esquecido que havia deixado todo o
conteúdo da caixa espalhado antes de surtar e me enfiar debaixo das cobertas. Levantei
e comecei a guardar as coisas na caixa. Retirei o anel do dedo e o encaixei de
volta em seu lugar, fechei a tampa da caixinha de madeira e a escondi entre
minhas roupas, junto ao colar.
O dia até que não
foi tão ruim como imaginei com Renato nos ajudando nas compras. Não deu muita
opinião sobre os móveis que escolhemos, nos levou a um restaurante simples e enquanto
minha mãe estava resolvendo o problema com a energia da casa, acompanhou a mim
e meu irmão pela Rua Teresa, uma rua inteirinha só de lojas de roupas. Apesar
do fato de Renato estar sendo muito legal, alguma coisa me dizia que ainda não
era hora de comentar sobre as fotos. A primeira impressão que tive de Renato
teria ido embora não fosse o fato dele insistir que eu deveria estudar em uma
determinada escola. Ele insistia que eu poderia conseguir uma bolsa, mas mesmo
assim era uma escola cara, onde somente a elite da cidade estudava. E eu não me
sentia à vontade com isso.
Mais tarde, já no
hotel, minha mãe e eu conversamos sobre o assunto.
— Você precisa decidir isso agora. — Insistia minha mãe. — A
prova para bolsa é semana que vem. Não terá muito tempo para ficar pensando.
— Eu gostaria de visitar outras escolas. E não sei qual o
problema de se estudar em uma escola pública. Não entendo porque é tão
importante que eu estude nessa escola.
— É a melhor escola da cidade. Acredito que ele só esteja
preocupado com seu futuro. Assim como eu. Se há uma oportunidade de ter o
melhor, por que não?
— Acabei de conhecer esse homem. Não sei por que ele estaria
preocupado com meu futuro. De qualquer forma, vou pensar no assunto. As
inscrições vão até sexta. — Eu disse em tom impaciente dando um ponto final à
conversa.
Minha mãe levantou as mãos dando-se por
vencida. Peguei a caixa que havia deixando em um canto e a coloquei em cima da
mesa. Comecei a retirar as fotos e observá-las melhor. Todas elas foram tiradas
enquanto eu estava na rua. Saindo ou entrando na escola, atravessando uma rua
ou na pracinha com meu irmão. Alguém ficou me vigiando todos esses anos. Pensei
em meu pai. Ele poderia ter tirado as fotos, mas por quê? Segundo minha mãe, um
dia ele simplesmente não voltou para casa e três dias depois deixou uma carta
na caixa de correio dizendo que se apaixonara por uma colega de trabalho. Nunca
mais apareceu ou mandou notícias. Talvez ele não quisesse se afastar de mim e
estivesse envergonhado demais para se aproximar. Mas isso ainda não explicava o
fato dessas fotos estarem em uma caixa no sótão de uma tia avó falecida. Revirei
os outros papéis velhos e encontrei um recorte de jornal. Ao contrário da
notícia estampada na primeira página do jornal que eu havia achado antes, esse
tinha “página quatro” impresso no canto inferior do recorte. Também não tinha
foto. Parecia apenas uma pequena nota sobre Carmela. “A excêntrica senhorita
Carmela Sales continua internada no hospital Santa Teresa. Seu estado é
estável, porém, segundo os médicos, não voltará mais a enxergar.” Não tinha
data. Alguma coisa acontecera e Carmela havia ficado cega. Mas quando isso
poderia ter acontecido? O recorte estava amarelado, então não era tão recente. Estava
tão distraída que não percebi minha mãe falando. Parecia que estava repetindo
uma pergunta já feita.
— Hã? — Eu perguntei olhando para ela.
— O que é isso tudo? — Ela disse apontando as fotos e os
papéis espalhados sobre a mesa. — Está tão distraída olhando essas coisas que
nem me ouviu falar.
— Hã. Isso? Ah, nada não. Um monte de papéis velhos. — Eu
disse colocando tudo de volta na caixa. — Vou jogar fora.
Não sabia se ela
tinha prestado atenção às fotos, mas estava torcendo para que não tivesse visto
nada. Se fora mesmo meu pai quem tirou as fotos, não tinha muita certeza se
minha mãe iria querer saber. Fechei a caixa e a devolvi para o canto do quarto
onde eu havia deixado antes. Tentei não pensar mais naquilo tudo, mas era
impossível. Após minha mãe e João dormirem, peguei uma lanterna e as chaves da
casa. Saí de fininho tentando disfarçar minha fuga com medo do recepcionista do
hotel me dedurar. Andei uns quinze minutos até a Rua Piabanha, onde ficava a
casa. A cidade estava quieta. Poucos carros passavam e o único movimento
parecia vir de um bar um pouco afastado dali. Entrei na casa escura e fui
direto ao sótão. Peguei mais uma das caixas e desci. Coloquei-a no chão do meu
quarto. Abri a janela para a claridade da rua entrar, mas não foi suficiente. A
rua, com a pouca iluminação amarelada e uma fileira de árvores frondosas também
estava escura e parecia sombria. Arranquei a fita que fechava a caixa com
dificuldade, pois tentava segurar a lanterna ao mesmo tempo. Retirei algo
embrulhado em um pano negro e aveludado. Era um livro grosso com capa de couro
desgastada. Abri o livro e em suas páginas mofadas havia símbolos e palavras irreconhecíveis.
Passei algumas páginas e me deparei com um desenho em forma de gota. O mesmo
que formava o pingente do colar e a pedra do anel. Não consegui identificar as
palavras escritas em volta. Era uma linguagem que eu desconhecia. Virei a página e observei um desenho onde três
gotas se uniam formando uma espécie de flor. E mais escrita desconhecida e
estranha. Fechei o livro e embrulhei-o de volta com o veludo. Retirei da caixa uma foto antiga em preto e
branco. Três moças de braços dados e as mãos cruzadas sobre a barriga. Usavam
uma espécie de túnica que deduzi ser cinza. Seus cabelos longos estavam
esvoaçantes como se uma rajada de vento as tivesse atingido. Coloquei a foto de
lado e continuei retirando as coisas da caixa. Uma adaga, com o cabo ricamente
trabalhado e uma pedra marrom em forma de gota incrustada. Uma segunda caixa
menor, com cinco velas votivas vermelhas. Estremeci. Aquilo tudo estava ficando
muito estranho. Percebi um vulto passando pela janela e prendi a respiração.
Meu coração acelerou tanto que podia ouvi-lo socando meu peito. Percorri o
quarto com a luz da lanterna. Um par de olhos verdes brilhantes estava me
encarando do canto do quarto. Tremendo, levantei-me do chão e caminhei devagar
até conseguir identificar o dono daqueles olhos. Um enorme gato malhado.
Branco, com manchas pretas e marrons. Abaixei-me e ele me rodeou roçando em
minhas pernas e ronronando. Fiz carinho
em sua cabeça.
— O que você faz aqui? Não pode ficar, vou fechar a casa.
Levantei-me e fui
em direção à janela. O gato me seguiu,
passou por minhas pernas e pulou no peitoril. Deu um miado e pulou sobre o teto
da varanda. Fechei a janela e iluminei a bagunça que eu havia deixado no chão.
Joguei as coisas dentro da caixa novamente e a empurrei para um canto.
Minha mãe e João
nem se deram conta de que eu havia saído durante a noite. Preferi ficar calada
a respeito desse detalhe. As coisas que eu estava encontrando dentro daquelas
caixas eram estranhas demais. Preferia descobrir sozinha o que eram exatamente.
Passamos o dia organizando e limpando melhor a casa. As camas chegaram à
tardinha e decidimos que já era hora de sair do hotel. Fizemos algumas compras
e a noite estávamos instalados em minha nova casa velha. Na tarde seguinte
resolvi dar uma volta pelo centro da cidade. Estávamos trabalhando muito na
casa e eu estava ansiosa demais por ainda não ter tido oportunidade de subir ao
sótão sozinha para olhar o que havia nas outras caixas. Fui a pé para o centro.
Circulei pela Rua do Imperador observando as lojas e entrei em uma lanchonete.
Fiz o pedido, peguei a bandeja e me sentei em um canto ocupando uma mesa com
apenas dois lugares. Um grupo de garotas sentou-se ao lado arrastando cadeiras
das outras mesas para acomodar as seis meninas em uma mesa de quatro lugares. Falavam
e riam alto, uma jogava seus cabelos loiros, lisos e compridos para os lados
como se fosse um tique nervoso. Avaliavam as roupas e acessórios umas das
outras criticando ou elogiando com certo exagero. Fiquei observando aquele
grupo me divertindo por dentro com a futilidade alheia. Uma vozinha tímida me
levou de volta ao meu mundo real.
— Posso sentar aqui?
Uma garota
baixinha, com cabelos castanhos e lisos na altura dos ombros, olhos castanhos
claros e lábios pequeninos estava parada de frente para mim segurando uma
bandeja.
— Ah, claro. — Eu respondi olhando em volta e percebendo que
a lanchonete estava lotada.
— É o grupinho da Sara. — A menina disse e só então percebi
que eu não tirava os olhos do grupo de garotas.
— Sara? — perguntei tentando ser simpática e ao mesmo tempo
curiosa por ver que a menina sabia quem eram aquelas escandalosas.
— É. A loira que não para de mexer no cabelo. O pai da
Sara é o cara mais rico da cidade. E as outras lambem o traseiro dela como
cachorrinhas. — Ela deu um suspiro desanimado. — Minha mãe está insistindo que
eu tente a bolsa para a escola onde elas estudam. — Ela meneou a cabeça. — Não
sei em quê ela está pensando. Nunca vou me adaptar num lugar assim.
— Mas você não precisa ficar amiga delas só porque vai
estudar na mesma escola.
— Está dizendo isso porque não as conhece direito. Ou
você é puxa saco de Sara ou você é tratada como lixo. — Ela levantou as mãos. —
Literalmente! Ano passado jogaram uma garota do primeiro ano na lixeira.
— Bem, acho que eu também não gostaria de estudar em
um lugar assim. Qual é a escola?
— Instituto Feliciano Borges.
— Espera. Aquele da Rua Ipiranga?
— É, esse mesmo.
— Minha mãe também quer que eu tente a bolsa.
— Verdade? — A menina arregalou os olhos.
— Não exatamente minha mãe. Meu advogado acha que é a
melhor escola da cidade e sugeriu, — Parei de falar por dois segundos e
consertei a frase. — ou melhor, insistiu que eu estudasse lá.
— Você tem um advogado? Que estranho.
Arriei os
ombros desanimada. A história era longa e complicada demais para explicar
porque uma adolescente de dezessete anos tinha um advogado. Então encurtei da melhor
maneira que pude.
— Eu morava em Minas e recebi uma casa como herança.
Então me mudei para cá e Renato está cuidando do testamento.
— Espere! — Ela deixou cair uma batata frita sobre a
mesa enquanto espalmava as mãos num sinal de pare. — Renato Rossini. O advogado
da Maluca da Piabanha?
Aquilo
havia soado tão engraçado que não consegui segurar o riso. E imediatamente me
toquei que a “Maluca da Piabanha” só poderia ser minha tia avó. O mesmo
advogado, o nome da rua onde eu agora morava e uma reportagem de jornal muito
suspeita.
— Se está falando de Carmela Sales, é minha tia avó. E
eu herdei sua casa.
— Você é a herdeira da Maluca da Piabanha? — Ela disse
em total tom de descrença.
— Qual o problema? Na verdade eu nem conhecia a
Carmela. Ela era tia de meu pai que, aliás, sumiu quando eu tinha dois anos de
idade.
— Caramba, caramba, caramba. — Ela sacudiu a cabeça. —
Desculpe, mas isso é demais! Você é o assunto da cidade! Não acredito que estou
bem aqui sentada diante de você. — A menina estava agitada e falando rápido. —
Então é verdade. A doida mandou uma substituta! — Ela tapou a boca e arregalou
os olhos. Em seguida soltou a mão e continuou. — Desculpe, desculpe, desculpe.
Não quis dizer que você é doida. Eu nem conheço você direito. Aliás, qual o seu
nome?
Eu estava diante de uma doida. E não
tinha a menor ideia do que estava falando. Como assim eu era assunto na cidade
e vim substituir a outra suposta doida? Por um momento tive vontade de me
levantar e ir embora deixando a menina falando sozinha. Mas alguma coisa nessa
história toda estava muito estranha. E a menina, apesar de tagarela, parecia
ser legal. Então me desarmei e tentei ser simpática.
— Sou Rafaela. Pode me chamar de Rafa.
— Prazer. Meu nome é Beatriz. Mas me chame de Miga. Todo
mundo me chama de Miga. Não por causa de amiga, na verdade é formiga porque sou
baixinha. Mas nem ligo. Então você é mesmo a herdeira da... como era o nome
dela mesmo?
Não pude
deixar de rir. A Beatriz era engraçada. Gostei de seu jeito tagarela e da forma
como dizia as coisas sem pensar muito.
— O nome é Carmela Sales. E eu acho que preciso saber
mais sobre essa história de “Maluca da Piabanha”.
— Eu preciso ir. Compras de Natal, sabe como é. A
gente podia se encontrar de novo. Que tal amanhã a tarde no jardim do Museu?
— Combinado. Eu te espero lá.
— Combinado. Até amanhã então. Três horas. Tchau.
Beatriz foi
embora e eu olhei para o grupinho das escandalosas. Estavam paradas, mudas e
olhando para mim. Uma delas estava até com as mãos apoiando o queixo como se
tivesse muito interessada na conversa que ouvira. Acho que eu e Miga falamos
alto demais. Peguei a bandeja, larguei em cima da lixeira e saí. Era só o que
faltava; ser motivo de fofocas na cidade.
Segundo capítulo - 20/04
1 comentários:
Eu não consegui parar de ler, querida!!!
Amanhã volto para pegar o link-me do seu blog e para ler o segundo capítulo :)
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